19 de dez. de 2014

NÓS SOMOS O TEXTO

 

TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E MODOS DE CONHECER: NÓS SOMOS O TEXTO

Pierre Lévy

O que acontece quando lemos ou escutamos um texto? Em primeiro lugar, o texto é perfurado, ocultado, permeado de brancos. São as palavras, os pedaços de frases que não ouvimos (não só no sentido perceptivo, mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto os quais não compreendemos, não tomamos em conjunto, não reunimos uns aos outros, negligenciamos. Paradoxalmente, ler, escutar, é começar por negligenciar, por não ler ou desligar o texto.  
Ao mesmo tempo em que rasgamos o texto pela leitura, nós o ferimos. Nós o recolocamos sobre ele mesmo. Nós relacionamos, umas às outras, as passagens que se correspondem. Os pedaços dispersos sobre a superfície das páginas ou na linearidade do discurso, nós os costuramos em conjunto: ler um texto é reencontrar os gestos textuais que lhe deram seu nome.  
As passagens do texto estabelecem virtualmente uma correspondência, quase uma atividade epistolar que nós, bem ou mal, atualizamos, seguindo ou não, aliás, as instruções do autor. Produtores do texto, viajamos de um lado a outro do espaço de sentido, apoiando-nos no sistema de referência e de pontos, os quais o autor, o editor, o tipógrafo balizaram. Podemos, entretanto, desobedecer às instruções, tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas, nós de redes secretos, clandestinos, fazer emergir outras geografias semânticas. 
Tal é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma superficialidade inicial, rasgar, ferir, entortar, redobrar o texto, para abrir um meio vivo onde possa desplugar-se o sentido. O espaço do sentido não preexiste à leitura. É percorrendo-a, cartografando-a que nós o fabricamos.  
No entanto, enquanto redobramos o texto sobre ele mesmo, produzindo assim sua relação consigo mesmo, sua vida autônoma, sua aura semântica, nós o reportamos também a outros textos, a outros discursos, a imagens, a sentimentos, a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constituem. Aqui, não é a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de nós mesmos, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem do mundo, o resultado de nossos projetos, o despertar dos nossos prazeres, o fio de nossos sonhos. Desta forma, o texto não é mais amarrotado, redobrado em rolo sobre ele mesmo, mas decupado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo os critérios de uma subjetividade nascida de si mesma. 
Do texto, logo nada mais resta. Ou melhor, graças a ele retocamos nossos modelos de mundo. Ele nos serviu, talvez, apenas para fazer entrar em ressonância algumas imagens, algumas palavras que nós já possuíamos. Por vezes, relacionamos um de seus fragmentos, investido de uma intensidade especial, a tal zona de nossa arquitetura mnemônica, um outro a tal pedaço de nossas redes intelectuais. Ele nos serviu de interface conosco mesmos. Apenas muito raramente nossa leitura, nossa escuta, terá como efeito reorganizar dramaticamente, como por um tipo de efeito de limite violento, o bolo misturado de representações e de emoções que nos constitui.  
Escutar, olhar, ler, voltam finalmente a se construir. Na abertura em direção ao esforço de significação que vem de outro, trabalhando, atravessando, amassando, decupando o texto, incorporando-o a nós, destruindo-o, nós contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. Confiamos, por vezes, alguns fragmentos do texto aos conjuntos de signos que se movimentam em nós. Estes ensinamentos, estas relíquias, estes fetiches ou esses oráculos não têm nada a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto. Eles, contribuem, porém, para criar e recriar o mundo de significações que nós somos.  
Até agora, não pronunciei a palavra hipertexto. No entanto, não se tratou senão disto. As tecnologias intelectuais, quase sempre, exteriorizam e reificam uma função cognitiva, uma atividade mental. Assim fazendo, elas reorganizam a economia ou a ecologia intelectual em seu conjunto e modificam em retorno a função cognitiva a qual pressupunha-se somente assistir e reforçar. As relações entre a escritura (tecnologia intelectual) e a memória (função cognitiva) estão aí para testemunhar.  
A chegada à escritura acelerou um processo de artificialização e de exteriorização da memória que sem dúvida começou com a hominização. Seu uso massivo transformou o rosto de Mnemósina.(1) Acabamos por conceber a lembrança como um registro.  
A semi-objetivação da memória no texto sem dúvida permitiu o desenvolvimento de uma tradição crítica. Com efeito, a escrita cruza uma distância entre o saber e seu sujeito. É talvez porque eu não sou mais o que eu sei que eu posso recolocá-lo em questão. A escritura fez surgir assim um dispositivo de comunicação, no qual as mensagens são muito freqüentemente separadas no tempo e no espaço de sua fonte de emissão e então recebidas fora do contexto. Do lado da leitura, foi preciso então refinar as práticas interpretativas. Do lado da redação, devemos imaginar sistemas de enunciados auto-suficientes, independentes do contexto.  
Com a escritura, e mais ainda com o alfabeto e a impressão, as formas de conhecimento teóricas e hermenêuticas avançaram sobre os saberes narrativos e rituais das sociedades orais. A exigência de uma verdade universal, objetiva e crítica, não pôde se impor senão em uma ecologia cognitiva grandemente estruturada pela escrita.  
Sabemos que os primeiros textos alfabéticos não separavam as palavras. Apenas muito lentamente foram sendo inventados os brancos entre os vocábulos, a pontuação, os parágrafos, as claras divisões em capítulos, os sumários das matérias, os índices, a arte de colocar na página, a rede de remissões de enciclopédias e dicionários, as notas de pé-de-página – em suma tudo o que facilita a leitura e a consulta de documentos escritos. Contribuindo para dobrar os textos, estruturá-los, articulá-los para além de sua linearidade, estas tecnologias auxiliares compõem o que nós poderíamos chamar de aparelho de leitura artificial.  
O hipertexto, a hipermídia ou a multimídia interativa percorrem um processo já antigo de artificialização da leitura. Se ler consiste em selecionar, esquematizar, construir uma rede de remissões internas ao texto, em associar a outros dados, em integrar as palavras e as imagens para uma memória pessoal em reconstrução permanente, então os dispositivos hipertextuais constituem uma espécie de reificação, de exteriorização dos processos de leitura. Já o vimos, a leitura artificial existe desde muito tempo. Que diferença podemos estabelecer entre o sistema que estava estabilizado sobre as páginas dos livros e dos jornais e aquele que se inventa hoje sobre as relações digitais? Em relação às técnicas anteriores, a digitalização introduz primeiro uma pequena revolução copernicana: não é mais o leitor que segue as instruções da leitura e se desloca no texto, mas é, de hoje em diante, um texto móvel, caleidoscópio que apresenta suas facetas, gira, torna e retorna à vontade diante do leitor.  
De outra parte, a escritura e a leitura mudam seus papéis. Aquele que participa na estruturação do hipertexto, no traçado pontilhado das possíveis pregas do sentido, é já um leitor. Simetricamente, aquele que atualiza um percurso ou manifesta tal ou qual aspecto da reserva documentária contribui para a redação, encontra momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor inventa podem ser incorporados à estrutura mesma dos corpus. A partir do hipertexto, toda leitura é uma escritura potencial. Mas sobretudo os dispositivos hipertextuais e as redes digitais desterritorializaram o texto. Eles fizeram emergir um texto sem fronteiras próprias, sem interioridade definível. Existe agora o texto, como se diz da água ou da areia.  
O texto é colocado em movimento, tomado em um fluxo, vetorizado, metamórfico. Está assim mais próximo do movimento mesmo do pensamento, ou da imagem que nós dele fazemos hoje. O texto subsiste sempre, mas a página se oculta. A página, isto é, o pagus latino, o campo, o território situado pelo branco das margens, lavrada de linhas e semeada pelo autor de letras, caracteres. A página, pesada ainda da argila mesopotâmica, aderindo sempre à terra do neolítico, esta página muito antiga, se oculta lentamente sob a alta superfície informacional, seus signos desligados vão rejuntar a onda numérica (digital). Tudo se passa como se a numerização (digitalização) estabelecesse uma espécie de imenso plano semântico, acessível em todo lugar, para o qual cada um poderia contribuir para produzir, dobrar diversamente, retomar, modificar, redobrar... Há necessidade de o sublinhar? 
As formas econômicas e jurídicas herdadas do período precedente impedem hoje o movimento de desterritorialização de ir até seu fim. A interpretação, quer dizer, a produção de sentido, não remete mais, desde então, à interioridade de uma intenção, nem a hierarquias de significações esotéricas, mas antes à apropriação sempre singular de um navegador. O sentido emerge de efeitos de pertinências locais, ele surge na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma mira de eficácia ou de prazer. Eu não me interesso mais sobre o que pensou um autor ausente, eu quero que o texto me faça pensar, aqui e agora. Nós chegamos aqui no limite das noções de texto e de leitura. Para ultrapassar a fronteira, para tentar compreender o que se joga além dela, proponho uma experiência de pensamento.  
Suponhamos que nós não tivéssemos inventado ainda a escritura e que extraterrestres tivessem colocado à nossa disposição todos os medias de comunicação contemporâneos, aí compreendido o suporte dinâmico, interativo, dotado de memória e de capacidade de cálculo autônomo que constitui a tela do computador. Os extraterrestres nos sugerem inventar um sistema de signos para nos ajudar a pensar e a registrar nossos pensamentos. Nestas circunstâncias, que gênero de escritura deveríamos colocar em questão? Seria o alfabeto? Certamente não, uma vez que o alfabeto – vogais e consoantes – é, grosso modo, um sistema de notação de som e que nós já dispomos de inúmeros aparelhos para registrar e restituir a voz. De que serviria passar anos a aprender o uso de um sistema de notação visual do som, uma vez que nós já o podemos gravar, reproduzir e, sobretudo, graças ao endereçamento numérico (digital), navegar na matéria sonora à vontade? O alfabeto foi inventado em uma época em que o gravador não existia. Na Antigüidade e na Idade Média, utilizavam-se os textos alfabéticos quase como fitas magnéticas, uma vez que as pessoas deveriam ler em voz alta e então ouvir o som para compreender o sentido. Mas como testemunham os ideogramas chineses, a escritura, para ser notação do pensamento, não é necessariamente um registro fiel do som das palavras.  
Como o mostram as cifras árabes e a notação matemática em geral, uma escritura pode ser independente das línguas. Se nos reportarmos à nossa experiência imaginária, ficará claro que nossos extraterrestres nos sugerem inventar uma escritura, um sistema de signos, uma tecnologia intelectual que, de um lado, não faça duplo emprego dos medias fundados sobre a captura imediata da imagem e do som e que, de outro lado, explore todas as possibilidades abertas pelas telas gráficas interativas, ou seja, através das realidades virtuais multimodais em três dimensões. A maioria dos sistemas de signos conhecidos até hoje – alfabético, ideográfico, mistos ou outros – foram imaginados quando se dispunha apenas de suportes estáticos fixos. Observamos que os multimedias ou hiperdocumentos contemporâneos contentam-se, muito freqüentemente, em retomar os signos inventados para outros suportes (escrituras diversas, cartas ou esquemas estáticos, imagens de vídeo, sons gravados) e colocá-los em rede. Eles promovem uma navegação nova em uma reserva semiótica antiga. Eles desterritorializam o estoque de signos já disponíveis. Nada de espantoso nisto, uma vez que os novos suportes interativos saíram dos laboratórios e têm existência social efetiva há menos de dez anos. Dez anos! Quase nada em relação à escala de evolução cultural, muito menos tempo do que foi necessário a uma civilização para inventar uma escritura nova e remanejar, de um só golpe, seu dispositivo de comunicação, de produção e de transmissão de conhecimentos. No entanto, temos já sob os olhos, nos dois extremos da hierarquia cultural, as premissas da nova escritura.  
Do lado da pesquisa científica, visualizam-se sobre as telas os modelos numéricos (digitais) dos fenômenos. As simulações gráficas interativas impuseram-se como indispensáveis ferramentas da imaginação auxiliada por computador. Nem experiência nem teoria, a simulação – verdadeira industrialização da experiência do pensamento – abriu uma terceira via à descoberta e à aprendizagem, desconhecida dos epistemólogos. O modelo numérico (digital) o qual projeta sobre a tela sua imagem dinâmica releva uma forma de escritura, mas certamente não da notação da palavra. Não se ouve o som, mas o modelo mental. E como modelo mental, ele é interativo, explorável, móvel, modificável, fortemente articulado sobre mil reservas de dados. Na outra extremidade da escala, os videogames oferecem os modelos interativos a explorar. Eles simulam terrenos de aventuras, universos imaginários. Certo, trata-se de puro divertimento. Mas como não ser tocado pela coincidência dos extremos: o pesquisador que faz proliferar os cenários, explorando modelos numéricos (digitais), e a criança que joga um videogame experimentam, ambos, a escritura do futuro, a linguagem de imagens interativas, a ideografia dinâmica que permitirá simular os mundos.  
Antes de condenar os videogames, os humanistas, os pedagogos, os criadores, os autores, deveriam valer-se desta nova escritura e produzir com ela obras dignas desse nome, inventar novas formas de saber e exploração que lhes correspondam, dar-lhes seus títulos de nobreza. Nada seria pior do que uma situação em que as pessoas de cultura se crispassem sobre o território do texto alfabético, enquanto a linguagem do futuro seria deixada aos técnicos e comerciantes. A barbárie nasceu quase sempre da separação. Existe um conhecimento por simulação, muito diferente dos estilos teóricos e hermenêuticos que se apoiavam sobre a escritura estática. Esses critérios principais não são sem dúvida mais aqueles da verdade crítica, universal e objetiva, mas antes aqueles da potência de bifurcação e de variação, da capacidade de mutação, de operatividade, de pertinência local, contextual.  
Com efeito, os meios de comunicação contemporâneos instauraram uma ecologia de mensagens muito diferente daquela que prevaleceu até a metade do século XX. Certo, não nos banhamos jamais duas vezes no mesmo rio informacional, mas a densidade das ligações e a rapidez das circulações são tais que os atores da comunicação não têm maiores dificuldades em dividir o mesmo contexto. Daí, a pressão de universalidade e objetividade diminuiu. Como o tinha pressentido Mac Luhan, reencontramos, mas sobre uma outra órbita, a um nível de energia superior, certas condições de comunicação que reinaram nas sociedades orais. A história cruzada de suportes materiais e da relação ao saber poderia ser esquematicamente representada pelas interferências e os cavalgamentos de quatro ideais-tipos. Primeiro tipo: nas sociedades anteriores à escritura, o saber prático, mítico e ritual foi encarnado pela comunidade viva. Quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Segundo tipo: com o advento da escritura, o saber é carregado pelo livro, único, indefinidamente interpretável, transcendente, suposto que contém tudo: a Bíblia, o Corão, os textos sagrados, os clássicos, Confúcio, Aristóteles... Terceiro tipo – desde a prensa até essa manhã: aquela da enciclopédia. Aqui, o saber não é mais carregado pelo livro, mas pela biblioteca. Ele é estruturado por uma rede de remissões, perseguida talvez, desde sempre, pelo hipertexto. A desterritorialização da biblioteca a que assistimos hoje não é talvez senão o prelúdio à aparição de um quarto tipo de relação com o conhecimento.  
Por uma espécie de retorno em espiral à oralidade das origens, o saber poderia ser de novo tomado pelas coletividades humanas vivas antes que por suportes separados. Somente esta vez, o portador direto do saber não seria mais a comunidade física e sua memória carnal, mas o cyberspace, a região dos mundos virtuais por intermédio da qual esta comunidade conheceria seus objetivos e se conheceria ela mesma como inteligência coletiva. Aqui, não visamos mais o futuro do texto clássico como na primeira parte de meu discurso, nem a invenção de uma nova escritura como na segunda parte, mas, para terminar, o basculamento em direção a toda uma outra ecologia da comunicação. A reunião dos documentos numerizados (digitalizados), programas inteligentes, de sistemas à base de conhecimentos, de suportes de simulação e de multimídias interativos, é já virtualmente realizada pela interconexão mundial de memórias informáticas. As mensagens eletrônicas construíram uma rede de comunicação internacional na qual se podem trocar e comentar toda sorte de dados. Mas como se orientar neste cyberspace onde correm mensagens e informações de toda ordem? Como se localizar em um fluxo? É preciso tentar desesperadamente fixar a forma do espaço científico, traçar as fronteiras das disciplinas? É preciso hierarquizar o essencial e o acessório? Mas, segundo qual critério? Para quem e por quanto tempo? Não é preciso antes se resolver a considerar o conhecimento como um espaço contínuo e flutuante, o mesmo para todos e diferente para cada um? Por que não projetar uma galáxia de mundos virtuais, exprimindo a diversidade dos saberes humanos, que não estaria organizado a priori, mas refletiria, ao contrário, os percursos e os usos de seus exploradores?  
Quase vivas, essas cosmopedias(2) seriam estruturadas e reestruturadas, cartografadas e recartografadas em tempo real pela escritura e a leitura coletivas. Assim, o cyberspace de uma comunidade se reorganizaria automaticamente em função da relação movente que seus membros estabeleceriam com a massa de conhecimentos disponíveis. Desde que o indivíduo mergulhasse em uma cosmopedia, todo o espaço do saber reordenar-se-ia em torno dele, segundo sua história, seus interesses, suas interrogações, suas enunciações anteriores. Tudo o que a ele se referisse estaria próximo, ao alcance da mão. O que lhe importasse pouco distanciar-se-ia. As distâncias aí seriam subjetivas, as proximidades refletiriam as significações em contexto. As cosmopedias do século XXI não fariam mais as pessoas girarem em torno do saber, mas o saber em torno das pessoas.  
O dispositivo das árvores de conhecimentos(3) doravante tecnicamente disponível é a prefiguração deste projeto. Até agora, visaram-se sobretudo realidades virtuais que simulavam os espaços físicos. Ora, eu falo aqui de produções de espaços simbólicos, que exprimiriam sob forma de mundos virtuais as significações e o saberes próprios a uma coletividade. Esses espaços virtuais, com a implicação direta e a componente tátil que a palavra sugere, exprimiriam em tempo real os conhecimentos, os interesses, os atos de comunicação da coletividade. Na perspectiva dos mundos virtuais de significações divididas, a comunicação não é mais concebida como difusão de mensagens, troca de informação, mas como emergência continuada de uma inteligência coletiva. Não se deve, evidentemente, concebê-la como uma fusão de inteligências individuais em uma espécie de magma indistinto, mas, ao contrário, como um processo de crescimento, de diferenciação, de ramificação e de retomada mutual de singularidades.  
Os instrumentos numéricos (digitais) oferecem a possibilidade de uma evolução em direção a uma maior democracia em relação ao saber. Mas nada é garantido. A hora na qual cada um reconhece que o conhecimento é o fundamento do poder, quando se repete por todos os lugares que a capacidade de aprender e de inventar sustenta o poder econômico, não há talvez outra via para uma renovação da democracia que não imaginar e colocar em obra formas não-excludentes de relação com o saber. Com este objetivo, a ideografia dinâmica, a cosmopedia, os mundos virtuais de significação dividida, o cyberspace para a inteligência coletiva são utopias que proponho à discussão crítica. Se nunca tais possibilidades virem o dia, então o Livro, a biblioteca, o imenso corpus proliferante e louco do saber, cessariam de nos sobrepor e de nos desenganar. A transcendência do texto começaria a declinar. Nós seríamos, talvez, menos irradiados pelo espetáculo mediático. A imanência do saber à humanidade que o produz e o utiliza, a imanência do povo ao texto, tornar-se-ía mais visível.  
Por intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam a uma escritura abundante, a uma leitura inventiva deles mesmos e de seus mundos. Como certos manifestantes desse fim de século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”, poderemos então pronunciar uma frase um pouco bizarra, mas que ressoará de todo seu sentido quando nossos corpos de saber habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.” E nós seremos um povo tanto mais livre quanto mais nós formos um texto vivo. 
________________ 
* Tradução de Celso Cândido. Assistência e consultoria de termos técnicos por João Batista. Edição-de-texto por Cássia Corintha Pinto.  
(1) Personificação mitológica da memória.  
(2) Cf. A Cosmopedia, uma utopia hipervisual (La Cosmopédie, une utopie hypervisuelle) – em colaboração com Michel Authier, in Culture Technique no. 24, abril 1992, consagrado às “maquinas de comunicação”, pp. 236-244.  
(3) Se encontrará a descrição disso no livro de Michel Authier e Pierre Lévy, As Arvores do conhecimento, op. cit.

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